segunda-feira, janeiro 23, 2006

XXIV

"Por esta altura já o Sol estava quase totalmente omisso por detrás da lustrosa calçada de água em que se reflectia.Ergui o olhar. E dei por mim a contemplar a mais bela criatura que Deus pôs na Terra. E tinha-me salvo... Acho eu... De repente, duas rudes mãos levantam-me pelos colarinhos."
Voltei a ter o mesmo sonho. Desde que o tive pela primeira vez naquele fétido hospital já se devia ter repetido pelo menos cinco vezes. Mas que raio quererá dizer?
Mal acabei de tomar o pequeno-almoço fui ver a caixa de correio. O bilhete que a Lucinda tinha deixado tinha apenas um número de telefone e escrito por baixo: "Pode fazer falta." Dizem que a curiosidade matou o gato. Bem, só espero ter também sete vidas.
Liguei. Atendeu uma voz, que em tom plástico disse: "Serviços de limpeza, bom-dia, em que posso ajudá-lo?" Desliguei. Aquela mulher nunca tinha resistido a implicar com a minha falta de asseio a todas as oportunidades. Mas esta foi, indubitavelmente, a mais requintada.
Assim de repente tive um lampejo: e o meu emprego? Será que ainda lhe podia chamar o meu emprego? Ou será que o excelso Senhor Doutor Arnaldo Vilaça, mantendo-se fiel à sua tão característica simpatia e por demais abundante generosidade, num libertário ímpeto de dar oportunidade à gente jovem, já o tinha libertado de qualquer vínculo para comigo? Sendo hoje Sábado, acho que ia esperar para descobrir.
Decidi pegar no meu cão e dar uma volta. Espera. Não tenho cão. Mas eu gosto de cães. Porque raio não tenho eu um cão? Tenho de tratar disso.
Fui dar a volta, mesmo sem canídeo como companheiro.

XXIII

Se calhar era melhor esperar por amanhã para ver o que é que aquela mulher me meteu na caixa do correio.
Entretanto, o dia tinha sido longo. Muito longo. Extenuantemente longo. Hora de contrabalançar e atacar os lençóis. Dormir sobre o assunto. Aliás, os assuntos. A minha cabeça era constantemente assoberbada por assaltos de interrogações delirantes.
Como de costume, passei o corredor pintado de escuro para o meu quarto abagunçado. Engraçado. Há uns anos passava horas a imaginar como seria a minha casa, o meu quarto, a minha cozinha, a minha sala. Imaginava tudo tão bem. E está tudo tão diferente. Talvez me disponha a tratar disso.
Despi a t-shirt verde e as calças de ganga. Nem me incomodei em enfiar o pijama. Estava tão derreado que me deitei logo. Acho que não adormeci, desmaiei.

terça-feira, outubro 25, 2005

XXII

Ainda não estava em mim, quando levanto os olhos e exactamente antes de sair, vira-se para trás com um olhar algo jocoso:

"- Se fosse a si, tinha cuidado... Essa gripe que anda por aí é terrivel... Os coitados dos passaritos estão todos a cair que nem tordos."
Podia jurar que no final tinha posto a língua de fora para acentuar ainda mais aquela piada... Soltámos uma gargalhada em uníssono e logo de seguida vi a porta a fechar e pude respirar fundo.
No entanto não consegui resistir a ver o que faria a minha ex-ex-ex-ex empregada ao sair da casa... Lembrava-me que tinha desistido cerca de cinco antes... Ainda não me lembro de bem porquê... mas não havia sido por trabalho excessivo ou por ter-se chateado... Espreitei por entre cortinas e vi-a a dirigir-se à caixa de correiro mesmo no início do jardim, tirar 1 caneta e 1 folha, escrever qualquer coisa e colocar lá. De seguida atravessou a rua e entrou na casa em frente. Seria empregada lá? Estou morto de curiosidade para ir ler o papel... mas não posso sair... Sei lá se ela não está também atrás de uma cortina a ver o que eu faço...

quinta-feira, setembro 15, 2005

XXI

Fiquei realmente assustado... Não me lembrei quem pudesse ser... A Beatriz tinha perdido a chave de minha casa há algum tempo. A adrenalina conduziu-me à cozinha. Peguei numa faca da gaveta e ao mesmo tempo que saí da cozinha, vi no hall de entrada o misterioso personagem. Reparei depois que era na verdade a Paula, minha antiga empregada.
-"AAAAAAAAH!"-berrou -"Foda-se! Mas que raio é que você 'tá a fazer com uma faca na mão?!"
Percebi agora o rídiculo da situação, e fiquei completamente embasbacado!
-"Hummmm... errrr... ah... FRANGO!"-disse eu com ar de amalucado.
-"Frango?!"
-"Sim... Estou a cortar frango na cozinha... Aliás, estava! Porque agora estou aqui... Quer dizer, você sabe isso! Está a falar comigo... Não podia estar a falar comigo se eu não estivesse aqui..."
Que raio estava eu a dizer?! Parecia que tinha levado com uma injecção quase letal de pura estupidez!
-"Bem, eu já não trabalho aqui, mas posso ajuda-lo, nunca teve grande jeito para qualquer tarefa doméstica, não é verdade?" Disse ela, encaminhando-se para a porta da cozinha.
-"Não!NÃÃÃÃÃÃO!!!" - disse eu enquanto bloqueei abruptamente a porta da cozinha... Se ela descubrisse que não estava lá frango nenhum ía-me achar um idiota, ou um psicopata!
-"Ora raisparta! Não é por isso que vou cobrar horas extras!"
-"Na...Não, é que a cozinha está muito desarrumada... Aliás, está mais que isso! É a coisa mais desarrumada que já foi criada! Há panelas e armários espalhados no chão, as cadeiras estao ao contrário, a mesa está cheia de...coisas! Nem deve ser seguro entrar lá... Pode pisar um ralador, ou... ter um ataque cardiaco, já que Arrumação é o seu nome do meio, né?"
-"E como raio foi a cozinha ficar assim se ainda hoje ou ontem chegou do hospital?"
-"Soube que eu 'tive no hospital?"
-"Claro! As notícias correm depressa, então quando são coisa rara!"
Ficou um silêncio estranho na sala... Um silêncio pateta!
-"A cozinha?!" relembrou-me ela, num tom de quem está a suspeitar de alguma coisa.
-"Ah, pois! O frango... Deram-me um frango vivo... Um presente estúpido de boas-vindas! E ele fugiu e andou a correr às voltas pela cozinha, e eu atrás dele, foi quase engraçado até..." Disse eu com um sorriso (mais uma vez) pateta, e de quem tem noção que as palavras estão a sair da boca mas não têm lógica nenhuma!
-"Um frango vivo?! Quem é que lhe ia dar um frango vivo?! A sua família é toda daqui da cidade, onde é que iam buscar um frango vivo?!"
-"Foi um primo da irmã do marido da madrinha do meu irmão... Não é bem família são muito, muuuuuuuito afastados!..."
-"Sim...okay..então eu vou-me embora agora..."
-"Sim, está bem... Xau xau!"
-"Xau..." Disse a coitada da rapariga, completamente estupefacta, enquanto abriu a porta e saiu.
Meu Deus! Que ridiculo! Tinha reunido nos ultimos cinco minutos mais estupidez que em toda a minha vida... Eu era um tipo certinho, o que é que se tava a passar comigo? Será que tinha mais alguma coisa na cabeça e os médicos não notaram? Tinha de ser... Acalmei finalmente passado um bocado...
-"Ai meu deus, que palhaçada aqui vai! Agora até já falas sozinho, vês?! Ui... Mas afinal o que é que a minha antiga empregada veio cá fazer?..."

terça-feira, setembro 13, 2005

XX

Que saudades da minha colecção de CDs, caoticamente arrumados pela minha sala...
Nota Mental: tenho de começar a ser arrumado... provelmente será por isso que as empregadas nunca duram mais de três meses...
Matei a minha sede de Nirvana... Vou aproveitar para tomar um longo banho na banheira... Já não me lembro da última vez que isso aconteceu (se tivesse dito isto há dois dias atrás teria sido uma piada excelente!). Tenho de começar a disfrutar dos pequenos prazeres da vida... Vai ser um banhito de imersão ao som de Fiona Apple... Hoje, o Tidal... Não tenho aparelhagem na casa de banho... Tenho de tratar disto... Afinal de contas é preciso aproveitar enquanto se é jovem... Vai o CD para a esterofonia do quarto e volume um pouquito mais alto e por hoje remedeia-se...
Ainda sequer tinha começado a Shadowboxer e já estava a D. Esmeralda a bater à porta e a gritar com a sua voz esganiçada de bagaço:
"- Pouco barulho!!! Pára lá essa música demoníaca... Esta juventude hoje..."
Deixa-a para lá aos berros e logo no final da Criminal resolveu calar-se. Se calhar ia fazer queixa à polícia por estarem a fazer barulho às 18h24... Enfim...
Não havia passado muito tempo quando ouço, exactamente no intervalo de uma música alguém a colocar as chaves na porta e abrir...

segunda-feira, setembro 12, 2005

XIX

Estava farto do hospital. Não podia mais com aquele ambiente. À minha voltava cheirava a doença e morte. Só isso fazia-me sentir pior. No entanto aquele choque que tive fez-me recuperar a memória. Lembrava-me agora de toda a minha vida, da minha rotina diária, da minha adolescência, de números de telefones... tudo... Sorri... Sentia-me bem.

Neste dia entrei no consultório imemoravelmente bem disposto. Já sabia no que iria resultar a visita. Finalmente ia ter alta... E assim aconteceu...
O João já me tinha trazido uma muda de roupa e algum dinheiro... Nem chamei ninguém para me vir buscar. Chamei um táxi e rumei direitinho para casa. Tinha saudades da tv, da música, da calma, do mar, do telefone, do meu mail, ... até do stress miudinho da cidade e do trabalho!

Vinha a cantarolar no táxi:
Nothing on top but a bucket and a mop
And an illustrated book about birds
See a lot up there but don’t be scared
Who needs action when you got words

o Plateau... era daquelas coisas inexplicaveis... Veio-me a cabeça e não saía... Mais valia ir na onda e cantarolar... Quem canta seus males espanta... E tinha alguns para espantar...

Finalmente cheguei a casa... A primeira coisa que fiz foi pegar no cd dos Nirvana por o som bem alto e escolher a música 7 do MTV Unplugged in New York... e que me perdoasse a dona Esmeralda, a minha vizinha do lado, mas ia ter de gramar com a música, gostasse ou não. Também já tinha fama de mau vizinho, por isso mais vale aproveitar as vantagens que isso traz!

quarta-feira, agosto 24, 2005

XVIII

Como era possível?! Como é que alguém consegue reentrar na vida de alguém, fazer com que essa pessoa se reapaixone, e ser assim tão, bem...VACA!!!
-"blá blá blá blá...mas estás tão... Abatido ainda, que não sei se vai ajudar... Blá blá blá!"
Claro, ía esperar que eu me conseguisse recompor para me deitar outra vez abaixo, para virar outra vez a minha vida ao contrário! Acho que nunca me tinha sentido tão irado, não podia ter a certeza, porque não me lembrava! Mas aquele sentimento era tão mau que desejei com todas as forças que nunca tivesse de ter passado por ele! Aptecia-me atirar o tabuleiro do almoço contra o chão, mandar as cadeiras contra a parede, arrancar os lençois com o monograma do hospital e rasgá-los, berrar e destruir tudo à minha volta! Mas de repente toda a raiva que tinha concentrou-se num só ponto... Os meus olhos... Uns segundos depois a minha face... Nunca na história de quem tem apenas uma recordação tinha sido registada uma lágrima tão salgado ou tão pesada... Era como se todas as coisas dispersas que tinha sentido minutos antes se acumulassem numa enorme e concentrada dor... Como se de um momento para o outro tivesse passado da pessoa mais "cheia" para a pessoa mais tristemente vazia que já tinha sido...
Que é que devia fazer naquele momento, se a única coisa de que me lembrava, era a única coisa que se quer sempre esquecer?...

terça-feira, julho 26, 2005

XVII

- Sim... Tens esse hábito nojento...

De repente entra uma enfermeira de repente...
- A hora das visitas terminou. Além disso, aqui o doente tem de ir ver o neurologista.

Até estava a gostar desta conversa... Paciência... Tenho tempo... Amanhã é um novo dia...

- Até amanhã. Não te importas que te venha ver, pois não? - diz-me com um sorriso algo misterioso...
-Claro que não! Quero saber tudo... Até amanhã.

E nisto lá me pus a caminho da minha consulta. Aquela meia hora passou num instante... Estava completamente nas nuvens... Consegui no entanto ter o momento de sobriedade para perguntar:

- E quando me vou voltar a lembrar? Que se passa afinal?

- Sabe, a área da neurologia ainda esconde muitos mistérios... Não posso dizer-lhe nada de concreto nem como e se vai recuperar a memória. Pode acontecer hoje, amanhã, daqui a uma semana, meio ano...

Bolas... Não precisava nada de ouvir isto... De cabeça baixa lá voltei àquele impessoal e triste quarto numa divisão qualquer do hospital. Só quero adormecer.

- Desculpe... Pode dar-me qualquer coisa para dormir? - perguntei a uma enfermeira que passava.

- Sim... Levo-lhe já ao quarto...

Não sei o que me deram, se era um placebo, ou um medicamento mesmo a sério mas que resultou, resultou. Nem cinco minutos passaram e já dormia profundamente...

Acordei com uma doce fragância no ar... Eu conheço isto... Tendre Poison... É um perfume... É o perfume... O perfume da Beatriz... Lembrei-me! Não vou abrir os olhos... Vou-me lembrar... De repente escuto uma melodia... "Hmmm mmm mmm" Era a nossa música... Sim... Começo a lembrar-me vagamente de algumas coisas... Nada de linear... Recordações tipo fotografias...
Foto 1: estou de joelhos com um anel na mão.... O sol espreita no horizonte
Foto 2: a Beatriz beija-me já com o anel na mão enquanto uma lágrima lentamente serpenteia pela sua face
Nota pessoal: estamos noivos! pelo menos... será que já nos casamos... será que o acidente foi na lua de mel... é bem provavél... um destino exótico e motos de água combinam bem
Foto 3: jantamos com quatro pessoas na casa dos 50 / 60 anos... Provavelmente o anúncio do noivado à família.
Foto 4: estou a abrir a porta de um café
Foto 5: É o mesmo café... Lá dentro vejo um casal. Parecem apaixanados... Beijam-se
Foto 6: Estou a tirar um maço de tabaco da máquina no café
Foto 7: Estou atónito mirando o casal da foto 5. É a Beatriz. Não pode ser...
Foto 8: Vejo a Beatriz levantando-se de rompante seguindo-me enquanto saio do café
Foto 9: Beatriz chora desalmadamente
Foto 10: Levo uma chave na mão enquanto caminho pela marinha
Foto 11: a moto de água onde estou vira-se

As imagens começam a passar ciclicamente pela minha mente... Cada vez mais depressa... Começam a fazer algum sentido....

"- VACA!!!"

segunda-feira, julho 25, 2005

XVI

_"Hmmm... Gustavo?!" disse ela sorrindo... Tinha o sorriso mais adorável do mundo... Podia não me lembrar de nada, mas sabia que era impossível haver outro sorriso assim. -" Gustavo era o nome do teu pai... Quando as coisas estiverem mais calmas, falo-te nele..."
-" O quê?! Gustavo não é o meu nome?"- perguntei eu, completamente à nora, parecia que me tinha explodido qualquer coisa na cara, estava tão orgulhoso de me lembrar do nome, e de repente percebo que é mais uma ilusão!
-"Não..."
-"Foda-se!" - mais uma explosão na cara! Será que eu dizia palavrões?! Ou será que dizia outro tipo de palavrões, aqueles de um membro respeitável da sociedade... Quem sou eu afinal? É incrível como as coisas mais básicas, às quais (provávelmente, porque não me lembro de nada), nunca dámos valor, me pareciam agora tão importantes...
-" Qual é o meu gelado preferido?" - perguntei
-"O quê?!"
-" Gelados. Qual é o meu gelado preferido?"
-"Hm... Frutos tropicais!"
-"Como é que eu gosto dos ovos?"
-"Mexidos, com fiambre e queijo!"
-"Comida preferida?!"
-"Umas coisas estranhas que comes num restaurante asiático..."
-"E a sobremesa?"
-"Não gostas de sobremesas..."
-"Não?!"
-"Não... Tens uma teoria de conspiração sobre as grandes empresas e os restaurantes..."
-"Hm... Qual é a minha bebida preferida?"
-"Nestea de maracujá..."
-"Alcoólica?"
-"Licor de maracujá!"
-"Fruta?"
-"Adivinha..."- riu-se outra vez, com um sorrisinho "traquina" completamente perfeito!
-"Qual é o meu filme preferido?"
-" 'O Pecado Mora ao Lado', com a Marilyn Monroe."
-"E livro?"
-" 'Provavelmente Alegria', de José Saramago."
-"Como... Como é que sabes tanto sobre mim?..." - voltamos á questão inicial...
-"Não sei se te deva contar a nossa históia já..."
-"Mas disses-te que ías contar ainda há 10 minutos atrás! 'Tás maluquinha, é?!"
-"Não, mas estás tão... Abatido ainda, que não sei se vai ajudar..."
O quê?! Como assim?! Não queria acrediar! Será que as coisas não eram tão cor-de-rosa como as havia pintado? Não podia ser... Não quero acreditar nisso! Já é mau que eu seja um fanático por maracujás, e não me lembre de nada... De repente fiquei completamente possuído por nervos...
-"Olha, eu fumo?!..."

terça-feira, julho 05, 2005

XV

Um sorriso num olhar que pintava o ar de azul, entrou e invadiu-me o peito com calor, um calor que já tinha sentido, talvez numa manhã enquanto acordava com o sol a bater-me na cara, a aquecer-me o corpo e olhava para o meu lado e via aquele olhar adormecido, mas com o sorriso nos lábios...
ela dirigiu-se a mim e beijou-me na cara! Na cara, pensei para comigo, então e a sensação que acabara de ter? Não seria ela a minha esposa ou namorada? Ela leu nos meus olhos a indecisão que percorria o meu cérebro.
- Não te lembras de mim? (Perguntou ela com um tom de voz quase que sussurrado...)
– Lembro-me da tua cara, mas não sei quem és! (Desabafei eu, na tentativa que ela me esclarecesse a sensação daquele olhar.)
– O meu nome é Beatriz... não te diz nada?
O nome dela ecoou na minha cabeça, imaginei-me logo a abrir desesperadamente as gavetas do meu sonho, Beatriz, Beatriz... sim lembrei-me, talvez estivesse na pasta dos sentimentos... e lá estava ela, o seu sorriso que me aquecia o coração, o seu olhar penetrante que me iluminava o dia como uma manha de sol, mas a pasta estava vazia, sabia que sentia algo de muito forte, mas seria amor, e se fosse que tipo de amor seria?!
– Sim não me é estranho, mas não tenho bem a certeza de onde te conheço...
Ela sentou-se na minha cama, sempre a sorrir e disse:
- Vou contar-te a nossa história!

Encontrei-te numa linha que liga meio mundo, se não ligar mesmo o mundo inteiro. A tua voz cruzou o meu ouvido no meio do som agudo que chamava já não sei por quem do outro lado. Pensei que fosse uma máquina daquelas em que se grava a nossa voz, mas senti o coração a aquecer e transbordar sangue. Dizias indignado que não podia ser assim, que o mundo não rodava a nossa volta, mas nós a volta do mundo… e eu respondi-te um: olá, o mundo não para de rodar hoje… Senti-te a rir baixinho, pediste desculpa e eu retribui-as, número errado… mas não cortas-te a linha e eu do meu lado agarrava-a com ainda mais força, puxava-a para mim e senti resistência do outro lado, também a puxavas. Naveguei pela linha até ao ponto médio e toquei-te, tocaste-te, vibrei e tu vibraste.

Começamos a falar sobre coisas banais, coincidências, destino, enfim de como a vida é feita de encontros inesperados, mesmo numa linha, num ponto médio. Falamos uma boa meia hora, os últimos 5 minutos tinham sido teus, e eu sentia o teu calor, o teu olhar doce, a tua boca suave. Trocamos números de telefone e só ai nos demos conta de que não nos tínhamos apresentado, eu não sabia o teu nome, nem tu o meu…

De repente abri a gaveta onde tinha armazenado a nossa história…

- Sim já me lembro, e então ai começamos de novo a nossa conversa… Olá, eu chamo-me Beatriz! Olá e eu Gustavo!

E foi assim, de repente lembrei-me de uma dado tão importante, que ainda não me tinha dado conta, o meu nome! Abracei-te, tinhas acabado de me devolver a minha identidade, mas ainda haviam falhas… Quis perguntar-te imensa coisa, contar-te os meus estranhos sonhos, mas não consegui abrir a boca, devia estar muito nervoso, e voltaram a injectar-me o liquido cor de rosa…

- Vou para as nuvens, volto já, não vás embora!

- Agora sei onde estás, não te deixo fugir!

terça-feira, junho 28, 2005

XIV

Com grandes expectativas lá abri a caixa. Maior parte das coisas não tinham qualquer valor ou significado imediato, como uma saquinha com rebuçados e outras coisas que guardamos nos bolsos diariamente. Os nossos bolsos são um pequeno pedaço de mundo vago... Havia outros objectos que me iam dando algumas pistas... Um porta-chaves com seis chaves... Provavelmente morava num apartamento. De manhã devia ser o primeiro inquilino a acordar. Acordava, tomava um café rápido para não me atrasar, abria a porta de casa, descia, quem sabe, um elevador, abria a caixa do correio e depois a porta do prédio, que estava ainda fechada. Depois entrava no meu carro desportivo descapotável, e nas férias que tinha do meu bom emprego, que me permitia ter uma boa qualidade de vida, ía até à praia andar de mota de água. Seis chaves... Claro que era preciso um sítio para guardar a mota! Uma garagem ou uma pequena casita de praia.
Tinha também um pequeno anel dourado... Será que era casado? Teria eu uma fantástica esposa em casa à minha espera? Isso mudava a rotina... Já não era um café rápido de manhã, mas um confortavel e longo pequeno almoço... Panquecas com morangos e natas e sumo de maçã para acompanhar. E um carro familiar, não um desportivo! Seria?! Mas então porque não me teria visitado ainda?! Hum... Na caixa não há nenhuma carteira, assim ainda não me devem ter identificado... Será que julga que estou morto?!
Perdi-me no meu mundo... Ou meu mundo imaginário... Que nome damos às nossas suposições?! De repente o médico entrou.
-" Ora muito boa tarde! Já viu outra vez os seus objectos pessoais, hein?"
-" Sim, é verdade... Mas só há isto? É tão pouco... Descodificar anos de existencia, nem sequer sei quantos, com meia duzia de objectos frios..."
-" Pois... É sempre tudo pouco quando se trata de memórias... Mas isso é tudo o que foi recuperado..."
-"Pena!"
-" Sim, mas tenho boas notícias, pensamos que talvez tenhamos encontrado um conhecido seu... Ligaram para aqui ontem, á procura de um senhor desaparecido, com a sua descrição..."
-"A sério?! Isso é fantástico!"
-" Sim, esperemos que sim... Agora tem de me acompanhar para fazer mais uns exames..."
-" E se chegar o conhecido?"
-" ELA disse que passava cá ás 6:30h, por isso tem tempo!"
Já tinha feito os exames... Eram 6:20 e já estava ansioso... Os nervos trincavam cada célula no meu corpo! De repente a porta abriu-se. Em câmara lenta, como nos filmes...

terça-feira, junho 21, 2005

XIII

Um acidente de mota de agua?

Como era possível não me lembrar sequer que tinha uma mota de agua, ou mesmo que sabia conduzir uma… Será que continuava a alucinar naquele sonho sem nexo… Tinha que me manter alerta, ditar as minhas células cerebrais que não saíssem da realidade. Mas pensando bem, de que raio de realidade estaria eu a fugir? Teria algo de terrível na minha vida, seria eu tão terrível que me quisesse esconder dentro do meu casulo? Cada vez mais me doía a cabeça, pensar doía, olhar doía, mexer doía, então voltei a desmaiar. Desmaiei e voltei a mergulhar na minha mente! Enquanto percorria o meu cérebro a procura da minha memória, só via grandes gavetas, gavetas enormes de uma madeira exótica qualquer, pesadas, cheias. Eram onde arrumava tudo o que por aquelas estradas de sinapses passava. Tinha imensas gavetas todas etiquetadas, (não fazia ideia de ser tão organizado…), adversidade, bem, coragem, crítica, deus, dinheiro, educação, erros, esperança, exemplos, êxito, fé, felicidade, generosidade, humildade, ideais, inteligências, justiça, morte, palavra, paz, personalidade, sacrifício, sexo, tempo, trabalho, virtudes, sentimentos! Inspirei fundo e ganhei coragem para abrir a gaveta dos sentimentos, na verdade abria-a porque era a que me parecia a mais pesada, tinha vários arquivos: Alegria, Amizade, Amor, Sofrimento, Temperança, etc. Tive medo de ler estes arquivos e me lembrar de tudo o que poderia ter perdido, sim, porque no fundo sabia que algo terrível acontecera e que aquele beco escuro, no fundinho da minha mente, cada vez se aproximava mais, como se crescesse de cada vez que vasculhava o meu arquivo.

Acordei, e aquelas gavetas tão organizadas não me saíam da imagem, e aquela mancha de crude a invadi-las. Mas afinal o que teria acontecido, quem era eu na verdade, na minha verdade! Tentei levantar-me, mas estava zonzo, olhei para a minha mão e um tubo com uma coisa cor-de-rosa estava ligado e a penetrar-me a pele. Esperei que alguém aparecesse, e comecei a imaginar o que dizer, iria confrontá-los, encosta-los a parede: Afinal o que faço aqui? O que me aconteceu? Eu numa mota de agua? Exijo explicações…?

O tempo parecia não passar, berros ouviam-se ao fundo, pessoas a correr, gritos de choro abafado durante eternidades que saíam estridentes…

Abriu-se a porta branca no fundo de um corredor pequeno que dava para o meu quarto igualmente branco, onde estava deitado numa cama com lençóis igualmente brancos, enfim tudo a minha volta era branco, como se estivesse envolto em luz, entrou uma enfermeira veio até mim e antes que pudesse confronta-la, enfim dizer tudo o que tinha ensaiado, pegou na caixinha azul e espetou-ma nas mãos!

A caixinha azul!!! Afinal existia mesmo!!

As minhas mãos tremiam, o que iria encontrar lá dentro, quem era afinal este corpo em que a minha alma estava aprisionada? E o sentimento de ter acontecido algo de tão terrível na minha vida! Abri a caixa!

quarta-feira, junho 15, 2005

XII

-Então que está fazer aqui no meio do corredor? - perguntou-me uma empregada forte e alta.
-Errrrr... Acho que me perdi!
Então ela agarrou-me pela camisa, levantou-me no ar e arrastou-me uns bons 50m, sem que eu pudesse fazer nada!
-Sr. Doutora encontrei este marmanjo por aí perdido! Que é que faço com ele? - perguntou a uma médica já de alguma idade que passou por nós. Felizmente passou por nós, senão quem sabe? Podía-me ter arrastado mais 100, 200 ou 300m, ou mesmo até à entrada do hospital! Teria sido uma cena embaraçosa. Eu ali na sala de espera quase com tanta roupa como quando vim ao mundo!
-Hum... Qual o seu quarto? Como veio aqui para, o que lhe aconteceu?- Perguntou a médica.
-Ahhhhhhhhh... Bolas! Não me lembro! Bolas, bolas, não me lembro de nada!!!
De repente houve uma explosão de perguntas na minha mente, como uma montanha russa, em que sentimos muita coisa mas não vemos nada á nossa frente. O que me tinha acontecido? Porque estava eu no hospital? As pessoas no meu sonho eram reais?
- Olhe sente-se ali, tente não sair do sítio, que isso descobre-se já! Isto aqui é só cuscos, sabe-se tudo de toda a gente, é só perguntar ás minhas amigas da cozinha!- Disse a empregada.
Sentei-me num banco, completamente á nora, confuso e sem rumo. Fiquei assim durante algum tempo. Não sei bem quanto, pois estava completamente perdido no turbilhão de perguntas que me iam surgindo. Finalmente a empregada voltou. Será que me ía arrastar outra vez? Quem sabe pôr-me numa cadeirinha e passear-me como um bébé?
- Está no quarto 303. Também já lhe chamei um médico,achei que ía querer!
Afinal a empregada era bastante simpática. Tinha uma placa na camisa, chamava-se Gertrudes.
Fui para o quarto e estava lá um médico á espera.
- Então perdeu-se outra vez, hein? Vamos ter de começar a pôr-lhe uma trela! Eu agora estou super ocupado, não posso ficar aqui muito tempo, mas tem aí no seu armário uma caixita azul com alguns objectos pessoais que trazia consigo, talvez ajudem. Ah! Você teve um acidente de mota de água... Convém lembrar-lhe... Mais uma vez... Se fosse a si escrevia um papel a dizer isso, para deixar de se perder e tal!

quarta-feira, junho 08, 2005

XI

Sentia-me como se estivesse envolvido num daqueles filmes de terror classe Z. O corredor à minha frente parecia não ter fim, a qualquer momento podia abrir-se a porta e sair da porta de um daqueles quartos um zombie que se dirigiria para mim lentamente e que por mais que corresse ele continuaria lentamente atrás de mim...
Senti as pernas a fraquejar... Tudo à minha volta andava à roda... Sentia-me muito tonto... Caí de joelhos, tentei não perder os sentidos, mas... BOLAS, era mais forte que eu, e tombei sobre o chão.
De repente senti muito calor, suava por todos os poros do meu corpo, levantei-me e lentamente abri os olhos... Não tinha passado tudo de um sonho, a rondar os limites de pesadelo... Sim de facto o meu pai havia morrido, faz hoje precisamente um ano... mas havia morrido no hospital naquela banal enfermaria... Bolas, será que os sonhos querem mesmo dizer alguma coisa? O que raio este me transmitia? Dizem que por vezes sonhamos devido a coisas, acontecimentos que nos acontecem e por vezes nem nos apercebemos mas transportamos isso para o nosso período de sono e consequente sonho...

domingo, maio 22, 2005

IX

Estontecido, via flashes, milhares deles, como se a minha mente fosse uma arcaica sala de cinema vazia, onde sozinho via o filme da minha vida.

-"Papá, papá pesquei isto, olha olha!"
-"Boa, boa! Vamos cozinhar para o almoço!"

-"...Muitas felicidades, muitos anos de vida!"
-"Pega a tua prenda especial de dez anos!"
-"Uau, uma bicicleta nova, obrigado mamã!"

-"Preparem-se para correr!"
-"O quê? Não!Ahah, não acredito que tocas-te à campainha!"

-"Bem Marta, o que eu te queria dizer é... Que eu te amo..."

-"Não me sinto muito bem... Acho que vou vomitar..."
-"Então gostas de martini, hein?"

-"Está com as tensões muito altas... Ou abranda, ou pode ter chatices!"

-"Olha... Não dá, chegamos a um ponto de monotonia total, só discutimos!... Vou-me embora!"
-"Cláudia, disses-te que estava tudo bem!"
-"Adeus. Boa sorte..."

-"Então rapaz! És o meu melhor empregado, por isso a promoção é tua! Claro que vais ter o horário mais preenchido, e o salário não aumentará por aí além, mas o teu astral! O teu astral vai até ao tecto!Eh Eh..."

-"Mas entao como é que falas?"
-"Com palavras e frases.. como achas que falo?"

-"Toda a gente tem a sua hora. Vivi bons momentos e uma vida plena! Consegui assistir ao triunfo dos meus filhos! Não posso querer mais nada."

Sim. Tinha tomado uma decisão. Acabar tudo ali.
Já o túnel se estava a fechar, quando tive duas ultimas pequenas visões.

-"Oooohhhh Meeeuuu Deeeuuusss! Nnnnããããõooo ééééé pppppoooosssssssssssssíííííívvvvvveeeeelllll..."

-"Estás bem?"
-"Acho que sim."

Não, não podia abandonar a minha mãe, não agora! Perder o marido e logo depois o filho? Como fui egoísta ao ponto de só pensar em mim?! A segunda visão não a sabia explicar, mas sabia que tinha de voltar. Assim via-me a atravessar o túnel ofegante, a correr em direcção a um ponto no horizonte, já quase totalmente apagado, vendo o velho de jeans e camisa axadrezada a rir-se, enquanto fumava tabaco num cachimbo.
-"Ai esta juventude, esta juventude!"
Inspirei fundo e dorido, e com um espasmo levantei as costas.
-"Doutor, temo-lo de volta!"
-"Calma rapaz, estás bem agora..."

sábado, maio 21, 2005

VIII

Resolvi seguir a luz. Sabia de que nada adiantava ficar ali a ver o médico olhando o meu corpo e escutando os meus batimentos cardíacos.
A luz provinha de um longo tunel, no tecto da sala. Fazia lembrar um buraco negro. Algo surreal, sem paredes físicas que se prolongava numa longa forma em espiral. Contudo não precisava de andar. Estava num plano superior, bastava-me pairar. E pairando lá fui em direcção à luz que me cegava...
Misteriosamente à medida que me aproximava a luz tornava-se mais fraca. Finalmente cheguei a uma ampla sala. Era uma sala muito engmática: as suas paredes, tecto, chão emanavam uma luz branca intermitentemente, às vezes mais forte, outras vezes mais fraca, mas sempre presente. Uma sensação de paz atingiu-me nesse momento. No centro da sala, estava um homem na casa dos seus 50 e poucos anos. Vestia umas jeans azuis e um polo axadrezado, vermelho e azul e calçava umas casuais sapatilhas e era algo calvo. Aproximei-me e percebia que assobiava uma melodia que me era familiar... Entretanto virou-se de repente e diz-me:
"- Estava à sua espera. Foi-lhe dada uma oportunidade única:
tem 30 minutos para rever a sua vida; depois disso deve decidir se prentende ficar e nesse caso terá umas boas contrapartidas que mais tarde serão discutidas; ou então voltar para trás pelo túnel por onde chegou aqui e regressar ao seu corpo.
Fica no entanto avisado: caso não escolha, escolheremos nós por si e ficará aqui. Depois dos 30 minutos as portas de entrada e saída comecar-se-ão a fechar e o tunél a estreitar-se."

Nisto despareceu em pleno ar, como se de fumo se tratasse...

Estava perplexo com tudo. No entanto, institivamente sabia que tinha de pensar rápido.
A minha vida já estava um caos... Só me faltava agora ter de pensar nela e fazer um ponto de situação...

sexta-feira, maio 20, 2005

VII

Subitamente o tempo parou! Ouvia ao longe a minha mãe a lamentar-se numa voz vagarosa e longíqua

"- Oooohhhh Meeeuuu Deeeuuusss! Nnnnããããõooo ééééé´pppppoooosssssssssssssíííííívvvvvveeeeelllll...."

A luz tremilicava pela sala toda, mas um foco apontava especialmente para a velha caixa. Vi a minha mão estender-se em câmara lenta para a agarrar. Enquanto isso mil pensamentos passaram-me pela cabeça... Lembrei-me porque tinha regressado... Lembrei-me da consulta no médico a dizer que precisava de abrandar o meu ritmo de vida, de dizer que estava com as tensões muito altas, de me fazer o seu ultimato:
"- Ou tira umas férias, ou....."
revi a minha separação da Cláudia, uma relação que já durava há 5 anos, revivi o stress de um trabalho que me ocupa cerca de 12 horas diárias, e acima de tudo a morte... a morte do meu pai, num momento em que voltava depois de tanto tempo ausente de casa...

De repente tudo começou a andar à roda, e senti-me a flutuar... Vi o meu corpo com uma caixa na mão imóvel... Vi a mãe chegar perto de mim e gritar por ajuda... Vi a rapariga e o seu pai que me haviam salvado a vida telefonarem... Acompanhei a ambulância levando-me a toda a velocidade para o hospital.
No hospital via o meu corpo sendo analisado por um médico enquanto eu gritava que o problema tava cá em cima... Não nesse ser-vivo vegetativo... na alma que o observava mais acima... De repente algo me chamou a atenção... Uma luz chamava por mim... Era um luz intensa e brilhante, como um strobe, aquelas luzes que há nas discotecas e nos grandes concertos que nos ofuscam os olhos...

domingo, maio 15, 2005

VI

Abri os olhos pesados.
Voltei a ouvir:
-Estás bem?
Dorido, respondi a custo:
-Acho que sim.
Por esta altura já o Sol estava quase totalmente omisso por detrás da lustrosa calçada de água em que se reflectia.
Ergui o olhar. E dei por mim a contemplar a mais bela criatura que Deus pôs na Terra. E tinha-me salvo... Acho eu... De repente, duas rudes mãos levantam-me pelos colarinhos.
-'Tão rapaz? 'Tás melhor? Valente safanão que apanhaste... Mas o que é que estavas a fazer a nadar a uma hora destas com um mar destes?
-Ermm... Apeteceu-me dar uma braçada... E afastei-me demasiado da costa...
Se lhe tivesse contado tudo o que passei ele pensava que eu era tolo. Quem acreditaria numa estrela-do-mar falante? E no meu pai a fazer incursões submarinas a meio da noite para ir buscar os ditos perlimpimpins? Tudo parece tão irreal. E, no entanto, tão presente. Será que estou a ficar doido? Será que a morte de meu pai me deu a volta à cabeça?
-Há tolos para tudo! - a voz rouca do imponente pescador interrompeu a minha linha de pensamento - Tens tu muita sorte em a minha Ana te ter encontrado, rapaz! Senão por esta altura ainda 'tavas ali deitado na areia a engolir água.
Voltei a minha atenção para ela. Ela, corada, escondia a face.
-Oh... Não foi nada...
-Foi o suficiente para me pôr aqui de pé. Já é qualquer coisa. - sorri-lhe carinhosamente e agradeci-lhe. Encharcado e dorido, fui para casa.
-Onde é que estiveste? - perguntou a minha mãe, com lágrimas a correrem-lhe os olhos. Nenhum de nós tinha ainda aceite a morte do pai.
-Tive de desanuviar. Fui dar um passeio pela praia.
-Olha para ti. Estás todo encharcado.
-Fui dar um mergulho. Ver se limpava a cabeça.
Odeio mentir. Especialmente à minha mãe.
-Mãe, o pai costumava pescar?
-Que raio de pergunta! Sabes mais que bem que o teu pai adorava pescar.
-Pois... Mas costumava ir ao ilhéu? Ou sair a meio da noite?
-Que eu saiba não. Mas todas as terças saía por volta das onze, onze e meia. Dizia que ia ter com um amigo. Normalmente adormecia antes de ele chegar. Mas essas perguntas todas assim de repente porquê?
-Nada... Por nada...
Odeio mentir. Subi as escadas para tomar um bom banho.
Saí do banho, e ao encaminhar-me para o meu quarto, vi a porta entreaberta do quarto dos meus pais. Veio-me ao pensamento a caixinha de que o pai falara. E, se bem me lembro, a estrela-do-mar também fez referência a uma caixinha azul.
Abri a porta. Pé ante pé, encaminhei-me para a cama. De joelhos levantei a colcha branca que cobria a larga cama de casal. Na escuridão reconheci os contornos de uma velha caixa de sapatos. Ao trazê-la à luz vi que estava atada com cordel. Pesaroso e a tremer como varas verdes, desatei o cordel que a envolvia como se de repente tivesse o mundo às costas. Levantei a tampa. E vi uma velha e desgastada caixinha azul.

quinta-feira, maio 05, 2005

V

-“Não! Isso é impossível!”
-“O teu pai costumava pescar no ilhéu… Ele falava comigo. Antes de mergulhar era sagrado.”
-“Mergulhar? Para pescar? Ele nunca fez pesca submarina! Para além de seres uma estrela fala-
barato ainda és mentirosa!” – disse troçando.
-“Deixa de te esconder atrás desse muro de humor! Toda esta situação está fora do teu controlo,
por isso distancias-te. O teu pai falava disso.”
-“PÁRA! Não falas, não conheces o meu pai, nem me conheces a mim!”
-“Ainda me lembro do sorriso quando emergia e respirava fundo… Uma vez quase se perdeu lá
em baixo… o Mar é um prega-partidas…Meio sadico, garanto-te eu.”
-“Que lá em baixo? Do que estás a falar?”
-“Todas as terças feiras á meia-noite e sete minutos lá vinha ele… Buscar os perlim pim pins,
como lhes chamava…”
-“DE QUE ESTÁS A FALAR?” – perguntei-lhe confuso.
-“Eu acho que podia ser mais criativo… Perlim pim pins… Nunca gostei do nome.”
Uma onda mais forte arrastou a estrela para dentro das águas. Já alucinando loucamente segui-a. As ondas eram rudes e a corrente puxava-me para o fundo. Perdi totalmente o controlo sem sequer me
aperceber, mas continuei á procura da estrela por algum tempo. Consegui vislumbra-la ao longe.
-“DO QUE FALAS TU?” – tentei berrar. “Explica-me, imploro-te! EXPLICA-ME!”
De repente fui puxado para cima. Vi apenas uma mão delicada e um fio reluzente de prata,
enquanto lutava para me soltar.
-“Como era? Ah, sim! Já me lembro… Era uma caixita azul… Uma pequena caixita azul…”
– continuava a falar, como se sozinha, a estrela, até desaparecer na turbulência.
Acordei já na praia, vislumbrando apenas uma sombra contra o pôr-do-sol aninhada
para mim.
-“Estás bem?” – disse uma voz extremamente calma e suave.

III

O fulgor do astro rei já não parecia dourado. O tão familiar som das ondas a encontrarem a areia, era agora como o ribombar de canhões irados.
-Papá... PAPÁ...
Pela derradeira vez o cansado velho deitou os olhos à fronte do seu primogénito.
-Estou feliz... És tu quem me abre a porta para o outro lado...
Foram estas as últimas palavras que os rugosos lábios do ancião deixaram lânguidamente escorregar.
O sal das lágrimas funde-se com o sal das águas marinhas. Uma sirene estridente fere o lúgubre silêncio. Nada a fazer. Já as rugas no seu rosto pareciam feições esculpidas a cinzel em cinzento mármore.
Que sádica ironia tinha a minha existência. Tinha eu, finalmente retornado a casa apenas para testemunhar a morte de meu pai.
-E agora?- pensei - E agora o quê?
Lembro-me de começar a correr...

quarta-feira, maio 04, 2005

II

Virei-me rapidamente. Naquele manto dourado vi o meu pai desesperado agarrado ao peito, contorcendo-se de dores! Aos trambolhões lá consegui correr para a sua beira.

“ –Que se passa, papá?” gritei desesperado.
“ – Toda a gente tem a sua hora. Vivi bons momentos e uma vida plena! Consegui assistir ao triunfo dos meus filhos! Não posso querer mais nada.” Dizia o velho vagorosamente
“ – NÃO. PAPÁ! Não digas parvoíces! Não fales! Luta.”
“ - Shhh… Não dificultes as coisas. Sê feliz. Procura uma velha caixa debaixo da cama…” dizia penosamente enquanto lutava mais uns minutos para ver o seu querido filho mais uns minutos
Poderia ser verdade? Teria eu voltado para apenas assistir à morte de meu pai? Não podia ser verdade! Do telemóvel rapidamente liguei o 112, inconscientemente sabendo que já nada poderia ser feito…

I

Senti os pés frios da areia húmida. Já me havia esquecido de como era fina aquela areia. Como era manchada por beatas de cigarro e galhos de embarcações.
O sol punha-se, escondido atrás do místico ilhéu que eu mesmo já havia pisado. Na verdade este era apenas a 15 minutos a nado da costa, mas por alguma razão pouca gente lá ia. O pedaço rochoso pertencia aos filhos do ar.
-“Estava com saudades de ti, Pai.” – Disse fitando o mar, caminhando sobre as ondas.
Pisei a rebentação. Enfim o filho pródigo havia regressado a casa.
-“AJUDA!” – Suou estridentemente pela praia...