terça-feira, julho 26, 2005

XVII

- Sim... Tens esse hábito nojento...

De repente entra uma enfermeira de repente...
- A hora das visitas terminou. Além disso, aqui o doente tem de ir ver o neurologista.

Até estava a gostar desta conversa... Paciência... Tenho tempo... Amanhã é um novo dia...

- Até amanhã. Não te importas que te venha ver, pois não? - diz-me com um sorriso algo misterioso...
-Claro que não! Quero saber tudo... Até amanhã.

E nisto lá me pus a caminho da minha consulta. Aquela meia hora passou num instante... Estava completamente nas nuvens... Consegui no entanto ter o momento de sobriedade para perguntar:

- E quando me vou voltar a lembrar? Que se passa afinal?

- Sabe, a área da neurologia ainda esconde muitos mistérios... Não posso dizer-lhe nada de concreto nem como e se vai recuperar a memória. Pode acontecer hoje, amanhã, daqui a uma semana, meio ano...

Bolas... Não precisava nada de ouvir isto... De cabeça baixa lá voltei àquele impessoal e triste quarto numa divisão qualquer do hospital. Só quero adormecer.

- Desculpe... Pode dar-me qualquer coisa para dormir? - perguntei a uma enfermeira que passava.

- Sim... Levo-lhe já ao quarto...

Não sei o que me deram, se era um placebo, ou um medicamento mesmo a sério mas que resultou, resultou. Nem cinco minutos passaram e já dormia profundamente...

Acordei com uma doce fragância no ar... Eu conheço isto... Tendre Poison... É um perfume... É o perfume... O perfume da Beatriz... Lembrei-me! Não vou abrir os olhos... Vou-me lembrar... De repente escuto uma melodia... "Hmmm mmm mmm" Era a nossa música... Sim... Começo a lembrar-me vagamente de algumas coisas... Nada de linear... Recordações tipo fotografias...
Foto 1: estou de joelhos com um anel na mão.... O sol espreita no horizonte
Foto 2: a Beatriz beija-me já com o anel na mão enquanto uma lágrima lentamente serpenteia pela sua face
Nota pessoal: estamos noivos! pelo menos... será que já nos casamos... será que o acidente foi na lua de mel... é bem provavél... um destino exótico e motos de água combinam bem
Foto 3: jantamos com quatro pessoas na casa dos 50 / 60 anos... Provavelmente o anúncio do noivado à família.
Foto 4: estou a abrir a porta de um café
Foto 5: É o mesmo café... Lá dentro vejo um casal. Parecem apaixanados... Beijam-se
Foto 6: Estou a tirar um maço de tabaco da máquina no café
Foto 7: Estou atónito mirando o casal da foto 5. É a Beatriz. Não pode ser...
Foto 8: Vejo a Beatriz levantando-se de rompante seguindo-me enquanto saio do café
Foto 9: Beatriz chora desalmadamente
Foto 10: Levo uma chave na mão enquanto caminho pela marinha
Foto 11: a moto de água onde estou vira-se

As imagens começam a passar ciclicamente pela minha mente... Cada vez mais depressa... Começam a fazer algum sentido....

"- VACA!!!"

segunda-feira, julho 25, 2005

XVI

_"Hmmm... Gustavo?!" disse ela sorrindo... Tinha o sorriso mais adorável do mundo... Podia não me lembrar de nada, mas sabia que era impossível haver outro sorriso assim. -" Gustavo era o nome do teu pai... Quando as coisas estiverem mais calmas, falo-te nele..."
-" O quê?! Gustavo não é o meu nome?"- perguntei eu, completamente à nora, parecia que me tinha explodido qualquer coisa na cara, estava tão orgulhoso de me lembrar do nome, e de repente percebo que é mais uma ilusão!
-"Não..."
-"Foda-se!" - mais uma explosão na cara! Será que eu dizia palavrões?! Ou será que dizia outro tipo de palavrões, aqueles de um membro respeitável da sociedade... Quem sou eu afinal? É incrível como as coisas mais básicas, às quais (provávelmente, porque não me lembro de nada), nunca dámos valor, me pareciam agora tão importantes...
-" Qual é o meu gelado preferido?" - perguntei
-"O quê?!"
-" Gelados. Qual é o meu gelado preferido?"
-"Hm... Frutos tropicais!"
-"Como é que eu gosto dos ovos?"
-"Mexidos, com fiambre e queijo!"
-"Comida preferida?!"
-"Umas coisas estranhas que comes num restaurante asiático..."
-"E a sobremesa?"
-"Não gostas de sobremesas..."
-"Não?!"
-"Não... Tens uma teoria de conspiração sobre as grandes empresas e os restaurantes..."
-"Hm... Qual é a minha bebida preferida?"
-"Nestea de maracujá..."
-"Alcoólica?"
-"Licor de maracujá!"
-"Fruta?"
-"Adivinha..."- riu-se outra vez, com um sorrisinho "traquina" completamente perfeito!
-"Qual é o meu filme preferido?"
-" 'O Pecado Mora ao Lado', com a Marilyn Monroe."
-"E livro?"
-" 'Provavelmente Alegria', de José Saramago."
-"Como... Como é que sabes tanto sobre mim?..." - voltamos á questão inicial...
-"Não sei se te deva contar a nossa históia já..."
-"Mas disses-te que ías contar ainda há 10 minutos atrás! 'Tás maluquinha, é?!"
-"Não, mas estás tão... Abatido ainda, que não sei se vai ajudar..."
O quê?! Como assim?! Não queria acrediar! Será que as coisas não eram tão cor-de-rosa como as havia pintado? Não podia ser... Não quero acreditar nisso! Já é mau que eu seja um fanático por maracujás, e não me lembre de nada... De repente fiquei completamente possuído por nervos...
-"Olha, eu fumo?!..."

terça-feira, julho 05, 2005

XV

Um sorriso num olhar que pintava o ar de azul, entrou e invadiu-me o peito com calor, um calor que já tinha sentido, talvez numa manhã enquanto acordava com o sol a bater-me na cara, a aquecer-me o corpo e olhava para o meu lado e via aquele olhar adormecido, mas com o sorriso nos lábios...
ela dirigiu-se a mim e beijou-me na cara! Na cara, pensei para comigo, então e a sensação que acabara de ter? Não seria ela a minha esposa ou namorada? Ela leu nos meus olhos a indecisão que percorria o meu cérebro.
- Não te lembras de mim? (Perguntou ela com um tom de voz quase que sussurrado...)
– Lembro-me da tua cara, mas não sei quem és! (Desabafei eu, na tentativa que ela me esclarecesse a sensação daquele olhar.)
– O meu nome é Beatriz... não te diz nada?
O nome dela ecoou na minha cabeça, imaginei-me logo a abrir desesperadamente as gavetas do meu sonho, Beatriz, Beatriz... sim lembrei-me, talvez estivesse na pasta dos sentimentos... e lá estava ela, o seu sorriso que me aquecia o coração, o seu olhar penetrante que me iluminava o dia como uma manha de sol, mas a pasta estava vazia, sabia que sentia algo de muito forte, mas seria amor, e se fosse que tipo de amor seria?!
– Sim não me é estranho, mas não tenho bem a certeza de onde te conheço...
Ela sentou-se na minha cama, sempre a sorrir e disse:
- Vou contar-te a nossa história!

Encontrei-te numa linha que liga meio mundo, se não ligar mesmo o mundo inteiro. A tua voz cruzou o meu ouvido no meio do som agudo que chamava já não sei por quem do outro lado. Pensei que fosse uma máquina daquelas em que se grava a nossa voz, mas senti o coração a aquecer e transbordar sangue. Dizias indignado que não podia ser assim, que o mundo não rodava a nossa volta, mas nós a volta do mundo… e eu respondi-te um: olá, o mundo não para de rodar hoje… Senti-te a rir baixinho, pediste desculpa e eu retribui-as, número errado… mas não cortas-te a linha e eu do meu lado agarrava-a com ainda mais força, puxava-a para mim e senti resistência do outro lado, também a puxavas. Naveguei pela linha até ao ponto médio e toquei-te, tocaste-te, vibrei e tu vibraste.

Começamos a falar sobre coisas banais, coincidências, destino, enfim de como a vida é feita de encontros inesperados, mesmo numa linha, num ponto médio. Falamos uma boa meia hora, os últimos 5 minutos tinham sido teus, e eu sentia o teu calor, o teu olhar doce, a tua boca suave. Trocamos números de telefone e só ai nos demos conta de que não nos tínhamos apresentado, eu não sabia o teu nome, nem tu o meu…

De repente abri a gaveta onde tinha armazenado a nossa história…

- Sim já me lembro, e então ai começamos de novo a nossa conversa… Olá, eu chamo-me Beatriz! Olá e eu Gustavo!

E foi assim, de repente lembrei-me de uma dado tão importante, que ainda não me tinha dado conta, o meu nome! Abracei-te, tinhas acabado de me devolver a minha identidade, mas ainda haviam falhas… Quis perguntar-te imensa coisa, contar-te os meus estranhos sonhos, mas não consegui abrir a boca, devia estar muito nervoso, e voltaram a injectar-me o liquido cor de rosa…

- Vou para as nuvens, volto já, não vás embora!

- Agora sei onde estás, não te deixo fugir!