domingo, maio 22, 2005

IX

Estontecido, via flashes, milhares deles, como se a minha mente fosse uma arcaica sala de cinema vazia, onde sozinho via o filme da minha vida.

-"Papá, papá pesquei isto, olha olha!"
-"Boa, boa! Vamos cozinhar para o almoço!"

-"...Muitas felicidades, muitos anos de vida!"
-"Pega a tua prenda especial de dez anos!"
-"Uau, uma bicicleta nova, obrigado mamã!"

-"Preparem-se para correr!"
-"O quê? Não!Ahah, não acredito que tocas-te à campainha!"

-"Bem Marta, o que eu te queria dizer é... Que eu te amo..."

-"Não me sinto muito bem... Acho que vou vomitar..."
-"Então gostas de martini, hein?"

-"Está com as tensões muito altas... Ou abranda, ou pode ter chatices!"

-"Olha... Não dá, chegamos a um ponto de monotonia total, só discutimos!... Vou-me embora!"
-"Cláudia, disses-te que estava tudo bem!"
-"Adeus. Boa sorte..."

-"Então rapaz! És o meu melhor empregado, por isso a promoção é tua! Claro que vais ter o horário mais preenchido, e o salário não aumentará por aí além, mas o teu astral! O teu astral vai até ao tecto!Eh Eh..."

-"Mas entao como é que falas?"
-"Com palavras e frases.. como achas que falo?"

-"Toda a gente tem a sua hora. Vivi bons momentos e uma vida plena! Consegui assistir ao triunfo dos meus filhos! Não posso querer mais nada."

Sim. Tinha tomado uma decisão. Acabar tudo ali.
Já o túnel se estava a fechar, quando tive duas ultimas pequenas visões.

-"Oooohhhh Meeeuuu Deeeuuusss! Nnnnããããõooo ééééé pppppoooosssssssssssssíííííívvvvvveeeeelllll..."

-"Estás bem?"
-"Acho que sim."

Não, não podia abandonar a minha mãe, não agora! Perder o marido e logo depois o filho? Como fui egoísta ao ponto de só pensar em mim?! A segunda visão não a sabia explicar, mas sabia que tinha de voltar. Assim via-me a atravessar o túnel ofegante, a correr em direcção a um ponto no horizonte, já quase totalmente apagado, vendo o velho de jeans e camisa axadrezada a rir-se, enquanto fumava tabaco num cachimbo.
-"Ai esta juventude, esta juventude!"
Inspirei fundo e dorido, e com um espasmo levantei as costas.
-"Doutor, temo-lo de volta!"
-"Calma rapaz, estás bem agora..."

sábado, maio 21, 2005

VIII

Resolvi seguir a luz. Sabia de que nada adiantava ficar ali a ver o médico olhando o meu corpo e escutando os meus batimentos cardíacos.
A luz provinha de um longo tunel, no tecto da sala. Fazia lembrar um buraco negro. Algo surreal, sem paredes físicas que se prolongava numa longa forma em espiral. Contudo não precisava de andar. Estava num plano superior, bastava-me pairar. E pairando lá fui em direcção à luz que me cegava...
Misteriosamente à medida que me aproximava a luz tornava-se mais fraca. Finalmente cheguei a uma ampla sala. Era uma sala muito engmática: as suas paredes, tecto, chão emanavam uma luz branca intermitentemente, às vezes mais forte, outras vezes mais fraca, mas sempre presente. Uma sensação de paz atingiu-me nesse momento. No centro da sala, estava um homem na casa dos seus 50 e poucos anos. Vestia umas jeans azuis e um polo axadrezado, vermelho e azul e calçava umas casuais sapatilhas e era algo calvo. Aproximei-me e percebia que assobiava uma melodia que me era familiar... Entretanto virou-se de repente e diz-me:
"- Estava à sua espera. Foi-lhe dada uma oportunidade única:
tem 30 minutos para rever a sua vida; depois disso deve decidir se prentende ficar e nesse caso terá umas boas contrapartidas que mais tarde serão discutidas; ou então voltar para trás pelo túnel por onde chegou aqui e regressar ao seu corpo.
Fica no entanto avisado: caso não escolha, escolheremos nós por si e ficará aqui. Depois dos 30 minutos as portas de entrada e saída comecar-se-ão a fechar e o tunél a estreitar-se."

Nisto despareceu em pleno ar, como se de fumo se tratasse...

Estava perplexo com tudo. No entanto, institivamente sabia que tinha de pensar rápido.
A minha vida já estava um caos... Só me faltava agora ter de pensar nela e fazer um ponto de situação...

sexta-feira, maio 20, 2005

VII

Subitamente o tempo parou! Ouvia ao longe a minha mãe a lamentar-se numa voz vagarosa e longíqua

"- Oooohhhh Meeeuuu Deeeuuusss! Nnnnããããõooo ééééé´pppppoooosssssssssssssíííííívvvvvveeeeelllll...."

A luz tremilicava pela sala toda, mas um foco apontava especialmente para a velha caixa. Vi a minha mão estender-se em câmara lenta para a agarrar. Enquanto isso mil pensamentos passaram-me pela cabeça... Lembrei-me porque tinha regressado... Lembrei-me da consulta no médico a dizer que precisava de abrandar o meu ritmo de vida, de dizer que estava com as tensões muito altas, de me fazer o seu ultimato:
"- Ou tira umas férias, ou....."
revi a minha separação da Cláudia, uma relação que já durava há 5 anos, revivi o stress de um trabalho que me ocupa cerca de 12 horas diárias, e acima de tudo a morte... a morte do meu pai, num momento em que voltava depois de tanto tempo ausente de casa...

De repente tudo começou a andar à roda, e senti-me a flutuar... Vi o meu corpo com uma caixa na mão imóvel... Vi a mãe chegar perto de mim e gritar por ajuda... Vi a rapariga e o seu pai que me haviam salvado a vida telefonarem... Acompanhei a ambulância levando-me a toda a velocidade para o hospital.
No hospital via o meu corpo sendo analisado por um médico enquanto eu gritava que o problema tava cá em cima... Não nesse ser-vivo vegetativo... na alma que o observava mais acima... De repente algo me chamou a atenção... Uma luz chamava por mim... Era um luz intensa e brilhante, como um strobe, aquelas luzes que há nas discotecas e nos grandes concertos que nos ofuscam os olhos...

domingo, maio 15, 2005

VI

Abri os olhos pesados.
Voltei a ouvir:
-Estás bem?
Dorido, respondi a custo:
-Acho que sim.
Por esta altura já o Sol estava quase totalmente omisso por detrás da lustrosa calçada de água em que se reflectia.
Ergui o olhar. E dei por mim a contemplar a mais bela criatura que Deus pôs na Terra. E tinha-me salvo... Acho eu... De repente, duas rudes mãos levantam-me pelos colarinhos.
-'Tão rapaz? 'Tás melhor? Valente safanão que apanhaste... Mas o que é que estavas a fazer a nadar a uma hora destas com um mar destes?
-Ermm... Apeteceu-me dar uma braçada... E afastei-me demasiado da costa...
Se lhe tivesse contado tudo o que passei ele pensava que eu era tolo. Quem acreditaria numa estrela-do-mar falante? E no meu pai a fazer incursões submarinas a meio da noite para ir buscar os ditos perlimpimpins? Tudo parece tão irreal. E, no entanto, tão presente. Será que estou a ficar doido? Será que a morte de meu pai me deu a volta à cabeça?
-Há tolos para tudo! - a voz rouca do imponente pescador interrompeu a minha linha de pensamento - Tens tu muita sorte em a minha Ana te ter encontrado, rapaz! Senão por esta altura ainda 'tavas ali deitado na areia a engolir água.
Voltei a minha atenção para ela. Ela, corada, escondia a face.
-Oh... Não foi nada...
-Foi o suficiente para me pôr aqui de pé. Já é qualquer coisa. - sorri-lhe carinhosamente e agradeci-lhe. Encharcado e dorido, fui para casa.
-Onde é que estiveste? - perguntou a minha mãe, com lágrimas a correrem-lhe os olhos. Nenhum de nós tinha ainda aceite a morte do pai.
-Tive de desanuviar. Fui dar um passeio pela praia.
-Olha para ti. Estás todo encharcado.
-Fui dar um mergulho. Ver se limpava a cabeça.
Odeio mentir. Especialmente à minha mãe.
-Mãe, o pai costumava pescar?
-Que raio de pergunta! Sabes mais que bem que o teu pai adorava pescar.
-Pois... Mas costumava ir ao ilhéu? Ou sair a meio da noite?
-Que eu saiba não. Mas todas as terças saía por volta das onze, onze e meia. Dizia que ia ter com um amigo. Normalmente adormecia antes de ele chegar. Mas essas perguntas todas assim de repente porquê?
-Nada... Por nada...
Odeio mentir. Subi as escadas para tomar um bom banho.
Saí do banho, e ao encaminhar-me para o meu quarto, vi a porta entreaberta do quarto dos meus pais. Veio-me ao pensamento a caixinha de que o pai falara. E, se bem me lembro, a estrela-do-mar também fez referência a uma caixinha azul.
Abri a porta. Pé ante pé, encaminhei-me para a cama. De joelhos levantei a colcha branca que cobria a larga cama de casal. Na escuridão reconheci os contornos de uma velha caixa de sapatos. Ao trazê-la à luz vi que estava atada com cordel. Pesaroso e a tremer como varas verdes, desatei o cordel que a envolvia como se de repente tivesse o mundo às costas. Levantei a tampa. E vi uma velha e desgastada caixinha azul.

quinta-feira, maio 05, 2005

V

-“Não! Isso é impossível!”
-“O teu pai costumava pescar no ilhéu… Ele falava comigo. Antes de mergulhar era sagrado.”
-“Mergulhar? Para pescar? Ele nunca fez pesca submarina! Para além de seres uma estrela fala-
barato ainda és mentirosa!” – disse troçando.
-“Deixa de te esconder atrás desse muro de humor! Toda esta situação está fora do teu controlo,
por isso distancias-te. O teu pai falava disso.”
-“PÁRA! Não falas, não conheces o meu pai, nem me conheces a mim!”
-“Ainda me lembro do sorriso quando emergia e respirava fundo… Uma vez quase se perdeu lá
em baixo… o Mar é um prega-partidas…Meio sadico, garanto-te eu.”
-“Que lá em baixo? Do que estás a falar?”
-“Todas as terças feiras á meia-noite e sete minutos lá vinha ele… Buscar os perlim pim pins,
como lhes chamava…”
-“DE QUE ESTÁS A FALAR?” – perguntei-lhe confuso.
-“Eu acho que podia ser mais criativo… Perlim pim pins… Nunca gostei do nome.”
Uma onda mais forte arrastou a estrela para dentro das águas. Já alucinando loucamente segui-a. As ondas eram rudes e a corrente puxava-me para o fundo. Perdi totalmente o controlo sem sequer me
aperceber, mas continuei á procura da estrela por algum tempo. Consegui vislumbra-la ao longe.
-“DO QUE FALAS TU?” – tentei berrar. “Explica-me, imploro-te! EXPLICA-ME!”
De repente fui puxado para cima. Vi apenas uma mão delicada e um fio reluzente de prata,
enquanto lutava para me soltar.
-“Como era? Ah, sim! Já me lembro… Era uma caixita azul… Uma pequena caixita azul…”
– continuava a falar, como se sozinha, a estrela, até desaparecer na turbulência.
Acordei já na praia, vislumbrando apenas uma sombra contra o pôr-do-sol aninhada
para mim.
-“Estás bem?” – disse uma voz extremamente calma e suave.

III

O fulgor do astro rei já não parecia dourado. O tão familiar som das ondas a encontrarem a areia, era agora como o ribombar de canhões irados.
-Papá... PAPÁ...
Pela derradeira vez o cansado velho deitou os olhos à fronte do seu primogénito.
-Estou feliz... És tu quem me abre a porta para o outro lado...
Foram estas as últimas palavras que os rugosos lábios do ancião deixaram lânguidamente escorregar.
O sal das lágrimas funde-se com o sal das águas marinhas. Uma sirene estridente fere o lúgubre silêncio. Nada a fazer. Já as rugas no seu rosto pareciam feições esculpidas a cinzel em cinzento mármore.
Que sádica ironia tinha a minha existência. Tinha eu, finalmente retornado a casa apenas para testemunhar a morte de meu pai.
-E agora?- pensei - E agora o quê?
Lembro-me de começar a correr...

quarta-feira, maio 04, 2005

II

Virei-me rapidamente. Naquele manto dourado vi o meu pai desesperado agarrado ao peito, contorcendo-se de dores! Aos trambolhões lá consegui correr para a sua beira.

“ –Que se passa, papá?” gritei desesperado.
“ – Toda a gente tem a sua hora. Vivi bons momentos e uma vida plena! Consegui assistir ao triunfo dos meus filhos! Não posso querer mais nada.” Dizia o velho vagorosamente
“ – NÃO. PAPÁ! Não digas parvoíces! Não fales! Luta.”
“ - Shhh… Não dificultes as coisas. Sê feliz. Procura uma velha caixa debaixo da cama…” dizia penosamente enquanto lutava mais uns minutos para ver o seu querido filho mais uns minutos
Poderia ser verdade? Teria eu voltado para apenas assistir à morte de meu pai? Não podia ser verdade! Do telemóvel rapidamente liguei o 112, inconscientemente sabendo que já nada poderia ser feito…

I

Senti os pés frios da areia húmida. Já me havia esquecido de como era fina aquela areia. Como era manchada por beatas de cigarro e galhos de embarcações.
O sol punha-se, escondido atrás do místico ilhéu que eu mesmo já havia pisado. Na verdade este era apenas a 15 minutos a nado da costa, mas por alguma razão pouca gente lá ia. O pedaço rochoso pertencia aos filhos do ar.
-“Estava com saudades de ti, Pai.” – Disse fitando o mar, caminhando sobre as ondas.
Pisei a rebentação. Enfim o filho pródigo havia regressado a casa.
-“AJUDA!” – Suou estridentemente pela praia...